Confrontos na Vila: um raio X da violência e das soluções
Por Michele Pacheco
O direito de um começa onde termina o do outro! Certo? Infelizmente, nem sempre funciona dessa forma. Temos acompanhado nas últimas semanas ações policiais na Zona Norte de Juiz de Fora. Os confrontos entre moradores e policiais militares se tornaram uma rotina perigosa no bairro Vila Esperança I. O caso mais recente envolveu um adolescente de 16 anos. Os militares davam buscas no bairro à procura de suspeitos de um roubo.
De acordo com o Boletim de Ocorrência, ao passar por uma rua, uma equipe da PM foi ameaçada. Os militares pararam e deram buscas pessoais num grupo de moradores. O adolescente que tem histórico de envolvimento em ações criminosas foi apreendido. A mãe dele e outras pessoas do grupo abordado tentaram impedir a apreensão, ameaçaram e desacataram os policiais. A caminho da Delegacia da Polícia Civil, alguns detidos chutaram e danificaram a cela da viatura e feriram a mão de um pm.
Todos foram levados à UPA Norte. À espera de atendimento, o adolescente deu um soco num dos militares e foi contido. A mãe dele e outras duas pessoas também agrediram os pms e houve tumulto no local. Todos foram algemados, passaram por exames médicos e foram levados para a Delegacia da Polícia Civil. A Polícia Militar se manifestou em um vídeo e disse que não vão ser tolerados confrontos contra os policiais. Começaram as Operações Ocupação. Poucos dias depois da ocorrência ser registrada, o mesmo adolescente voltou a ser apreendido, por determinação do Juiz de Vara da Infância e da Juventude de Juiz de Fora.
Criminalidade histórica
Situações desse tipo fazem parte da história dos bairros Vila Esperança I e Vila Esperança II. Eles são vizinhos e algumas ruas têm um lado num bairro e o oposto no outro. Eu e o Robson Rocha acompanhamos as ocorrências no local há muitos anos. Crimes violentos, ameaças, protestos com pneus queimando nas ruas, ônibus apedrejados e queimados, população trabalhadora em risco de ser atingida pelas confrontos.
Foram muitas entrevistas regadas a lágrimas de parentes inconsoláveis por perder filhos, netos, sobrinhos… As brigas entre grupos rivais dos dois bairros têm se agravado nos últimos 25 anos. Socos e chutes deram lugar a tiros e facadas. Uma bola de neve que só cresce. A cada registro de assassinato ou tentativa, se seguem outras incontáveis ocorrências causadas pelas ações de vingança dos dois lados. O vídeo abaixo é de uma das coberturas que fizemos.
De tanto acompanhar os problemas, em 2012, sugerimos fazer uma série de matérias especiais sobre o assunto. Nós dois ainda trabalhávamos na TV Alterosa / SBT. Passamos vários dias no bairro, conversando com moradores, ouvindo os adolescentes envolvidos, conhecendo o que havia de errado e os projetos que estavam dando certo para tentar mudar aquela realidade. Na primeira reportagem especial, ouvimos familiares de vítimas assassinadas em ambos os bairros. Repare que os motivos dos crimes muitos vezes eram fúteis e que as ameaças aos Policiais Militares eram expostas abertamente em pichações!
Conversa franca
Nossa equipe sempre teve uma regra clara ao trabalhar: respeitar o outro como gostamos de ser respeitados. E o retorno sempre foi positivo. Foi graças a essa postura que circulamos livremente pelas áreas em guerra. Tivemos uma conversa franca com os líderes dos dois bairros. Explicamos que não estávamos lá para criar “heróis da violência” e sim para fazer perguntas duras, que toda a sociedade tinha vontade de fazer. Todos, sem exceção, aceitaram dar entrevista.
Na segunda matéria, mostramos que os relatos são muito parecidos, vindos de rivais. E um detalhe nos chamou a atenção: ninguém sabia como as rixas e os confrontos começaram, mas todos estavam empenhados em aplicar a lei do “toma lá dá cá”, que imperava nas Vilas. Em cada depoimento, dava para sentir o orgulho que os envolvidos nas ações violentas sentiam por participar dos crimes de vingança e o empenho em ser cada vez mais forte do que o rival.
Famílias no limite – pertencimento negativo
Ouvimos também as mães e os parentes dos adolescentes. Lágrimas e apelos desesperados foi o que encontramos, tanto na Vila Esperança I, quanto na Vila Esperança II. Um detalhe importante é que muitas dessas mães faziam parte de uma geração que também alimentou a rivalidade e passou isso aos filhos. É importante lembrarmos, como pais, que o sentimento de pertencimento e as memórias afetivas se relacionam tanto a situações positivas, quanto negativas. Ao contar a uma criança, com orgulho e satisfação, como fazia quando era adolescente para marcar território e prejudicar os grupos rivais, um pai ou uma mãe transmitem aos filhos a sensação de que devem repetir esses atos para ter o mesmo sentimento de alegria.
Da mesma forma, ao relatar as memórias afetivas de como eram os confrontos na infância e na adolescência deles, os pais imprimem nos filhos imagens de que algo negativo é positivo. Ouvindo os depoimentos dos adultos dos dois bairros, entendemos que eles acreditavam com sinceridade que a culpa era sempre do outro lado. Eles não enxergavam que a rotina de “ação + reação” só agravava o problema e distanciava a comunidade de uma solução.
Inclusão social x criminalidade
Para quem não conhece o local, os bairros ficam numa área íngreme. Na parte de baixo, está a Vila Esperança I, mais antiga. E acima dela foi construída a Vila Esperança II. Desde o início, há relatos de rivalidades. E o que torno o problema ainda mais sério é a infraestrutura urbana. A UBS, Unidade Básica de Saúde, funciona na Vila I. Algumas escolas ficam na Vila II. Isso faz com que os moradores tenham que transitar todo dia pelas “áreas com risco de confronto”.
Para o poder público na época, era uma questão de inclusão social. Criar infraestruturas separadas seria o mesmo que segregar ainda mais e criar um muro instransponível entre os dois bairros. Por isso, eram incentivadas ações comunitárias e assistentes sociais tentavam unir os dois lados do confronto. Muitos dos eventos criados acabavam em brigas. De 2012 até hoje, algumas mudanças estruturais foram feitas. Mas, sempre com a noção de que isolar as comunidades é pior do que insistir na pacificação delas.
De tempos em tempos, parece que a paz voltou a reinar. Mas, então, surge um novo tumulto. Nos últimos três anos, a rivalidade se estendeu ao relacionamento com a Polícia Militar. Foram vários registros de viaturas em patrulhamento de rotina com policiais sendo ameaçados ao passar por alguma rua. Principalmente, no acesso principal ao bairro Vila I. Grupos de adolescentes e jovens cercam os militares e avisam que não serão bem recebidos e devem deixar o local. Reforço é pedido e começa o corre-corre. Abordados entrando em casas, portões sendo trancados, militares alvo de pedras e garrafas, prisões, apreensões, viaturas cercadas por mulheres e crianças com a finalidade de impedir que os moradores detidos sejam levados para a delegacia. E por aí vai…
Voltando ao princípio do “toma lá dá cá”, que continua vigorando, mas com algumas mudanças, a cada confronto com grupos criminosos, a PM organiza Operações Presença, Ocupação e Batidas Policiais. E, a cada ação policial, há uma represália por parte dos envolvidos na criminalidade, com mais ameaças e conflitos. Assim, a “bola de neve” ganha novos contornos, mas segue crescendo. E o uso das redes sociais tem que ser levado em consideração. Sempre há um parente ou amigo dos abordados revoltado, registrando as ações policiais e compartilhando nas redes sociais como violência das autoridades. Por outro lado, PMs estão no limite e se sentindo ameaçados. Eles também têm registrado a agressividade de parte dos moradores para desmentir nas mesmas redes sociais as denúncias de abusos.
Numa das reportagens da série, ouvimos a população. Algumas pessoas reclamaram dos projetos sociais que nunca saem do papel, entra governo, sai governo. As autoridades explicaram que as equipes de trabalho muitas vezes desistiram de insistir nas ações de melhoria, por se sentirem ameaçadas pelos envolvidos no crime, que não têm interesse em mudanças. Outros cobraram a instalação de um Posto Policial dentro das Vilas. A Polícia Militar respondeu que não era uma solução segura e destacou que realiza um trabalho de conscientização nas escolas e busca envolver comerciantes e moradores em programas de segurança pública. Inserir crianças e adolescentes em projetos que mostrem a eles que podem gastar energia em ações positivas também são iniciativas que buscam um futuro melhor para todos nas Vilas.
Caminhos para a Paz
Encerramos a série falando das iniciativas que estavam em andamento para resgatar adolescentes e jovens envolvidos na rivalidade e também para ocupar o tempo das crianças, evitando que se envolvessem nos conflitos e propagassem as brigas e os crimes por mais gerações. Esporte e religiosidade são uma dupla invencível no quesito de envolvimento social e mobilização pela paz. Ainda hoje, temos inúmeros exemplos de ongs, associações, projetos oficiais do município e das Polícias para oferecer alternativas saudáveis e que ajudem a comunidade a se desenvolver.
Na série, ouvimos a juíza Maria Cecília Gollner Stephan, que era a responsável pelo Juizado da Infância e da Juventude na época. Ela destacou o papel essencial do Centro Sócioeducativo Santa Lúcia como mecanismo para afastar os adolescentes do ambiente violento, reeducar e oferecer a eles novos horizontes. A magistrada destacou ainda que não basta esse período de afastamento para definir mudanças definitivas. É preciso “tratar” o ambiente também. O adolescente que fica acautelado pode até desenvolver uma outra visão de vida e o desejo de um futuro melhor. Mas, se ele voltar ao mesmo ambiente nocivo, voltará a se contaminar por ele. Aí, entra a necessidade urgente de cuidar da família também.
Ouvimos ainda o juiz da Vara de Execuções Penais da época, José Armando Pinheiro da Silveira. Experiente no Tribunal do Júri e tendo julgado inúmeros casos de crimes violentos envolvendo adolescentes e jovens, ele defendia a necessidade de uma revisão das leis sobre maioridade penal e a responsabilização criminal. Na última reportagem, ele destacou que não basta mudar a maioridade penal para 16 anos. Um adolescente de 14 ou 15 ainda vai ser considerado menor de idade. E o envolvimento em criminalidade tem ocorrido cada vez mais cedo. Todas essas reflexões são extremamente atuais. Onze anos se passaram desde que fizemos a série. Sem dúvida, avanços foram feitos.
Na minha opinião, nós jornalistas e população em geral temos uma parcela grande de responsabilidade. Já pensou no que pode acontecer se nos empenharmos em divulgar e compartilhar notícias e informações sobre os projetos que dão certo, sobre as iniciativas positivas, com a mesma agilidade e interesse com que compartilhamos os vídeos e as notícias de confrontos e de violência? Parece impossível? Se cada um de nós fizer isso. Já vai fazer uma enorme diferença! São inúmeros os envolvidos em ações positivas e as crianças e adolescentes que se dedicam aos estudos, aos esportes e iniciativas culturais, como os cursos gratuitos da Praça CEU, para melhorar as vidas deles e da comunidade. Você ouve falar deles com frequência? Aposto que não! É como se fazer o bem não fosse importante, não valesse divulgação. Nunca é tarde para mudar isso!