Nas entrelinhas de Machado de Assis

Um dos mais brilhantes escritores brasileiros marca presença em provas do Enem e de concursos públicos. Quando falamos de Machado de Assis (1839-1908), estamos falando de obras complexas, com uma multiplicidade de significados que nem todos os leitores estão aptos a perceber.

De alunos do ensino médio a pesquisadores universitários, o autor apresenta desafios de entendimento e de interpretação dos textos que deixou. Ele é apontado como o responsável por inaugurar o Realismo no Brasil. Jornalista, Machado de Assis se habituou com os relatos cotidianos da sociedade brasileira do final do século XIX e início do século XX. Também foi contista, cronista, poeta e teatrólogo. Na Academia Brasileira de Letras, ocupou a cadeira número 23.

Uma das obras que desafiam até hoje os leitores e estudantes é Dom Casmurro (1899). O romance é narrado em primeira pessoa pelo personagem Bento. Resumindo a história, Bentinho e Capitu se apaixonam na adolescência e prometem se casar, apesar da mãe dele ter prometido que o filho seria padre. Bento se forma em Direito e se casa com Capitu. Eles têm um filho chamado Ezequiel. Até aí, parece uma linda história de amor. Para retratar essa família, Machado de Assis quebra alguns padrões da época.

Foto cedida por Darlan Lula

Darlan Lula, escritor e pesquisador, escreveu alguns livros e é especialista em Machado de Assis. Ele foi mais a fundo em “Ressurreição” e “Dom Casmurro” e mapeou 218 contos do autor que abordam o ciúme. A hipótese de que não houve traição de Capitu foi levantada pela primeira vez na década de 1970, por uma pesquisadora estadunidense. Ela encontrou fragmentos na obra que reforçaram a inocência da personagem.

Os olhos do pesquisador brilham quando fala de todos os significados escondidos nas entrelinhas das obras de Machado. Em Dom Casmurro, Darlan lembra que a história foi escrita numa sociedade machista, em que a mulher ainda não era considerada tão importante quanto o homem na estrutura familiar e social. Dentro desse contexto, Capitu se destaca com uma visão inteligente para as finanças e a administração da casa e dos bens.

Foto cedida por Darlan Lula

Na narrativa de Bentinho, há elementos contraditórios que enganam os leitores menos atentos. Uma leitura superficial do livro pode deixar a impressão de que Capitu traiu o marido com o melhor amigo do casal. Bento descreve que o olhar da esposa para o amigo no caixão foi de amor e a partir daí ele reforça a todo momento a questão da traição. Passa inclusive a encontrar traços de Escobar em Ezequiel, usando isso como justificativa para se separar de Capitu e enviar a mulher e o filho para a Europa, onde os dois morrem.

Darlan destaca o brilhantismo de Machado de Assis, que consegue confundir o leitor e exigir dele toda a atenção para as entrelinhas, o que não é dito abertamente, mas se esconde nos detalhes da narrativa de Bento. Durante uma conversa com o pesquisador, perguntei se “Dom Casmurro” era um livro sobre ciúmes ou sobre adultério. Ele sorriu e respondeu que essa era uma questão essencial!

Foto cedida por Darlan Lula

Numa sociedade machista, como o escritor poderia falar abertamente de violência doméstica, machismo e outros temas polêmicos e considerados tabu na época? Só mesmo com muita inteligência. Um análise mais psicológica dos personagens permite encontrar traços de ciúmes, de relacionamento abusivo, de violência psicológica. Se fosse ambientado nos dias de hoje, como será que Capitu reagiria à postura do marido e às acusações dele? Boa parte dessas ações de Bentinho iriam de encontro às leis que combatem a violência contra a mulher, a violência de gênero. Ele provavelmente seria preso e Capitu e o filho conseguiriam uma medida protetiva contra o homem abusivo.

Mas, vamos voltar ao século XIX! Machado de Assis sabia que não poderia tratar abertamente de temas como relacionamentos conjugais, direitos das mulheres e preconceito. Isso acarretaria protestos contra a obra e quem sabe até onde a sociedade iria para punir o escritor e acobertar os comportamentos tradicionais da época? Melhor não arriscar! Daí é que surge o brilhantismo do romance. Ele “fala sem falar”, deixa subentendido, afirma algo de forma que o leitor mais esperto entenda que está querendo dizer o contrário. Uma ironia refinada que nem todas as mentes do século XIX e dos tempos atuais são capazes de captar.

Admito que depois da entrevista veio uma vontade enorme de reler “Dom Casmurro”! Quando li na escola – sempre foi um livro recomendado para vestibular e concursos, sendo indicado ainda hoje no Enem em exames de seleção, como o Pism –  eu fiquei revoltada com o Bentinho, porque achava que ele parecia um louco enxergando coisas que não existiam. Eu entendi que as ações da Capitu nunca foram de uma mulher que não se preocupava com o marido, o filho e a família. Muito pelo contrário! O próprio Bento deixava clara a importância dela na vida familiar e nos negócios deles. Mas, essa é a minha interpretação e peço desculpas se nessa matéria deixei impresso o meu ponto de vista. Caso os leitores tenham opinião contrária, saibam que respeito e acho importante essas visões diferenciadas para uma boa análise e discussões sobre o livro.

Darlan acredita que as dúvidas sempre vão existir, partindo do pressuposto de que cada leitor projeta na obra sua “bagagem pessoal”, suas experiências e sua forma de encarar a vida. Então, sempre teremos pessoas que vão acreditar no discurso de Bentinho e acusar Capitu, da mesma forma que teremos leitores indignados contra a injustiça de Bento contra a mulher e o filho. O mais importante é que a obra continue desafiando e comprovando que Machado de Assis era um gênio, capaz de costurar sentimentos, pensamentos e narrativas de uma forma que poucos autores conseguiram na História.

Para conhecer mais sobre a obra e as pesquisas do Darlan, confira a entrevista completa no nosso canal do Youtube, Michele Pacheco e Robson Rocha. https://www.youtube.com/watch?v=TBae3MBX7N4 

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