Resgate de memórias na Educação para Jovens e Adultos

Foto E.M. Olinda de Paula Magalhães

Resgatar memórias é importante? Eu sempre acreditei que sim. Depois de um convite para realizar uma oficina de Narrativa e Expressão com alunos da EJA, Educação para Jovens e Adultos, na Escola Municipal Olinda de Paula Magalhães, em Juiz de Fora, eu tive a certeza do quanto isso é importante e necessário. Quando cheguei, notei olhares curiosos, outros indiferentes, alguns arredios. Dava para sentir a mistura de sentimentos: interesse e desconfiança.

Eu já esperava por isso. As turmas de EJA nem sempre são tratadas com o respeito que merecem. Muitos alunos se sentem discriminados pelos colegas de outros turnos pela idade e pelo tempo que estão levando para concluir uma série. Enfim, se enxergam com olhar negativo em vez de enxergar a coragem que têm. Não é qualquer um que consegue passar o dia trabalhando ou desempenhando outras atividades e ainda ter disposição para estudar à noite.

Expliquei isso com todas as letras! Para mim, foi uma honra ter sido chamada para conversar com aqueles alunos. Como eram poucos, decidimos fazer um círculo com as cadeiras no pátio, sair da formalidade da sala de aula e formar uma roda de conversa, onde todos tinham lugar especial.  O Sanderson Romualdo, representante da Secretaria Municipal de Educação estava presente na roda. Fiquei satisfeita por ver o apoio da prefeitura a dinâmicas diferentes nas escolas municipais.

Foto E.M. Olinda de Paula Magalhães

Cultura Popular

O tema da oficina de Narrativa e Expressão não era muito fácil: cultura popular e produção artística na comunidade. Com o horário corrido durante o dia, eu não esperava que os alunos tivessem tido tempo de pesquisar sobre o tema e achei mais importante trabalhar com foco nos bairros deles, na região onde moram, a Zona Sudeste de Juiz de Fora. Mas, como motivar os estudantes cansados a dialogar sobre cultura? A professora Paula Ferraz, idealizadora da dinâmica, explicou que o pessoal não tinha conseguido identificar na própria comunidade exemplos de cultura popular.

Isso só reforçou a minha ideia de que o resgate de memória tem que ser uma tarefa corriqueira na educação pública e privada. Se isso acontecesse, numa situação como essa, os alunos conseguiriam enxergar nas comunidades próximas a eles exemplos de arte e de cultura. Para que entendessem que não era motivo de recriminação ou de vergonha eles não terem identificado essas características nos bairros, eu dei o meu próprio exemplo.

Quando a professora Paula me convidou para realizar a oficina, eu fui buscar na minha memória de infância exemplos de cultura popular na minha cidade, Três Rios-RJ. E…não encontrei! É sério! Eu levei um susto ao perceber que não lembrava de nenhuma manifestação artística de quando eu era criança ou adolescente! Então, fiz um exercício e busquei o máximo de lembranças, o que fazia, onde brincava, quais eram os costumes da cidade… E me veio à mente o Teatro Celso Peçanha! O palco dele abrigava no final do ano apresentações de teatro amador e profissional, das escolas de balé e de outras danças e tudo o que eu me lembro de eventos culturais.

Contei aos alunos que eu também tive dificuldades em recordar, mas tinha conseguido. E começamos uma dinâmica de resgate. Um pouquinho aqui, outro ali. As dúvidas foram sendo expostas e juntos conseguimos identificar manifestações artísticas e culturais nos bairros próximos. Senti que alguns se soltaram mais na dinâmica depois disso. Estávamos no mesmo barco, em pé de igualdade, cada um buscando nas lembranças o que era necessário para a oficina.

Comentei que essa dificuldade era criada em parte por uma “cultura do negativo”. Aquela mania incômoda que temos de enxergar primeiro o ruim. Muitas vezes, de tão acostumados ao negativismo, nem conseguimos mais enxergar os pontos positivos. Isso acontece com a Educação, a Cultura e tudo o mais no nosso dia a dia. Pelos olhares, a cada minuto mais atentos, entendi que o grupo estava presente. Os ares de desânimo e de indiferença tinham sido substituídos por um sentimento de unidade, de participação.

A conversa fluiu ainda mais. Falamos sobre a importância de aplicar diferentes narrativas para cada situação específica e a necessidade de saber se expressar em situações pessoais e profissionais. Falei da minha experiência como jornalista e da importância de ter empatia e saber identificar a melhor forma de abordagem em cada tipo de situação. O bate papo girava e a gente sempre voltava ao tema inicial: cultura popular.

Foto E.M. Olinda de Paula Magalhães

Pertencimento

A professora Paula lembrou do caso recente da obra do artista Kobra, que teve um dos grafites mais famosos dele apagado em São Paulo. Conversamos sobre isso, sobre os dois lados do problema. De repente, ela perguntou aos alunos se eles já tinham notado que as pilastras da escola eram decoradas com grafites e que eles faziam referências a obras como o Abaporu, de Tarsila do Amaral, e às festas juninas. Alguns mostraram surpresa e depois a alegria de poder responder positivamente. Sim, eles repararam e gostavam dessa característica. Quando perguntados como se sentiriam se chegassem na escola e vissem as pilastras brancas e sem os grafites, todos reclamaram. E, nesse exato momento, eles entenderam o significado do grafite apagado em São Paulo e o motivo da insatisfação de quem convivia diariamente com a obra.

Conversamos também sobre a diferença entre grafite e pichação. Paula comentou que um dos alunos, tinha reclamado ao ver que o muro da escola tinha sido pichado. Perguntei o motivo do incômodo dele. Primeiro, fez ar de que isso não era importante, depois disse que não tinha gostado do que estava escrito e por terem feito isso no muro da escola. Expliquei que a revolta dele passava por algo muito marcante, o pertencimento. Quando entendemos que algo nos pertence e nos sentimos pertencentes a esse “algo”, nosso desejo é cuidar dele, preservar, guardar para sempre na memória e repartir com outras pessoas. O estudante talvez não tivesse se dado conta ainda de que considerava a escola algo realmente importante para ele e, por isso, se sentiu mal ao ver o que fizeram no muro.

A coordenadora da escola, Graziela Oliveira, estava presente na oficina e era possível perceber, pelo brilho dos olhos dela o quanto estava orgulhosa dos alunos da EJA. Eu olhava para ela e a professora e sentia que, mesmo cansadas depois de um dia longo de trabalho, das questões familiares para resolver e de tantas outras preocupações, as duas pareciam encantadas com a participação do grupo. Educadores como elas deveriam ser obrigatórios em todas as escolas. São profissionais assim que constroem nossas melhores memórias! Todos nós temos recordações de alguns professores que, por um motivo ou outro, nos ensinaram não apenas lições escolares, mas ensinamentos de vida! Porque encaram os alunos com a sensação de pertencimento, como se fossem da família deles. E cuidam como se fossem!

Foto E.M. Olinda de Paula Magalhães

Diferentes formas de narrativa

Os assuntos foram surgindo naturalmente. Expliquei dentro do jornalismo as diferentes formas de texto e de narrativa, formatação de textos para TV, Rádio e site. Eles me fizeram algumas perguntas, tiraram dúvidas e ouviram muitas histórias. Foram cerca de três horas de conversa. Sem interrupção! O tempo passou tão rápido que todos nós ficamos assustados ao perceber que a hora tinha avançado tanta. Para encerrar, fizemos uma brincadeira.

De início, ninguém quis ser repórter ou cinegrafista. Depois, Kennedy Anderson e Johnathan aceitaram participar. Eu fiquei surpresa. Sei que é preciso muita coragem para participar de uma atividade diferente na frente dos colegas. Coloquei um microfone de lapela no repórter Kennedy e o cinegrafista Johnathan usou um celular para simularmos um link ao vivo deles entrevistando a Graziela. Imagino que os corações estavam bombando de ansiedade, mas eles foram impecáveis.

Foto E.M. Olinda de Paula Magalhães

Daqui a um, dois ou dez anos, quando eu for falar sobre essa oficina com os alunos da EJA, o resgate de memória vai ser imediato e positivo. Vou lembrar da alegria da Carol e dos cuidados dela com a professora; do exemplo do Sr. Célio, que tem mais de 60 anos, acorda às 4h, trabalha o dia inteiro e vai à aula com sede de conhecimento; do Kennedy que tentou parecer indiferente mas revelou ser uma pessoa de coragem, capaz de superar desafios e de chegar onde ele quiser chegar; do Johnathan que superou a vergonha e formou uma ótima equipe como cinegrafista do “repórter” Kennedy e de todos os estudantes que participaram da oficina. Vou lembrar também da Paula, da Graziela, do Sanderson e de todos os educadores que entendem que Educação envolve muito mais do que cumprir uma grade curricular.

Por tudo isso, a resposta à pergunta que fiz no início vai ser sempre sim! Resgatar memórias ajuda na construção de novas lembranças, na retomada da autoestima e no reforço da sensação de pertencimento.  Que todas as turmas da Educação para Jovens e Adultos possam participar de dinâmicas diferentes e construir recordações.

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